As várias vidas do
Gaspar

A Vida e a Visão

As várias vidas do Gaspar: um contributo biográfico. 1940-2019

O Gaspar moldou sua vida de uma forma peculiar. Foi uma construção em ciclos, quase uma sucessão de vidas diferentes. Cada uma delas foi vivida intensamente, com grande energia, entusiasmo e determinação. Tinha a visão de promover o progresso, de ter impacto na sociedade, de mudar o mundo aqui e agora.

Em cada novo ciclo, chegava como um estranho e ao fim de pouco tempo era evidente o seu grande impacto, o valor acrescentado que representava. Isto resultava da sua competência, inteligência e visão; e da sua capacidade de transmitir o entusiasmo, de juntar as pessoas e levá-las consigo. A sua visão ampla fê-lo escolher sempre objectivos grandes e caminhos difíceis: vamos construir algo que não existe no país; vamos fazer o que nunca antes foi feito. Não tinha medo de sonhar, dos obstáculos, do mundo.

O Gaspar tinha mais entusiasmo do que paciência. Muito do impacto de longo prazo de cada um dos seus ciclos de vida dependeu de outras pessoas, que assumiram um dos seus caminhos e construíram edifícios mais sólidos e duradouros. Mas que ainda se lembram de que o Gaspar tornou isso possível ao apontar a direcção e começar a abrir o caminho.

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— Ciclos de vida —

  1. Juventude e luta política
  2. Décadas de 1970 e 1980
  3. Criação do LIP
  4. A aventura do LHC
  5. Computação distribuída
  6. Impacto na sociedade
  7. Terapia com protões


Juventude e luta política

Gaspar Pereira de Morais Barreira nasceu em Braga a 4 de Maio de 1940. Viveu até depois do 25 de Abril com o nome de Gaspar Ferreira, em consequência da lei que obrigava a que os filhos fossem registados com o nome do marido da mãe, mesmo que o casal vivesse separado. Filho ilegítimo, foi perfilhado em testamento pelo pai biológico, com quem cresceu, e com quem tinha uma relação próxima. No meio familiar recebeu, nas suas palavras, uma "formação liberal". O seu pai, Félix de Morais Barreira, pertencia à administração pública. Terminou precocemente a carreira em 1945, como secretário geral do governo civil do Funchal, por se ter recusado a cumprir a ordem de Salazar de hastear a bandeira em sinal de luto pela morte de Hitler. Este episódio marcou o seu filho Gaspar "para a vida".

No ano lectivo de 1957/58, veio para Lisboa estudar engenharia no Instituto Superior Técnico, e cedo despertou para a militância política. O primeiro ano foi vivido no rescaldo da grande luta estudantil do ano anterior contra o designado "decreto 4900", que cerceava os direitos das associações de estudantes. O jovem Gaspar associou-se muito cedo à candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, nas eleições de 1958. Recordando esses tempos, afirma Domingos Abrantes: "Era um jovem que convivia mal com as ideias absolutas, atento às opiniões dos outros, e avesso ao sectarismo. Convivia bem com os jovens comunistas e com eles percebeu o que era o fascismo, e que era coisa para se levar a sério." Tornou-se membro do Partido Comunista Português em 1959, desenvolvendo actividade nos sectores intelectuais. Passou à clandestinidade, como funcionário do PCP, no segundo semestre de 1963, um corte radical e difícil com o modo de viver até então. Foi destacado para um curso na Checoslováquia, e depois na URSS. Deixou Portugal logo após o nascimento do filho, e esteve no estrangeiro durante 15 meses.

No dia 14 de Maio de 1966, foi preso pela PIDE numa rua próxima do porto de Lisboa. Regressava a casa depois de uma reunião em casa de um operário da construção naval. Só depois do 25 de Abril foi possível explicar a sua prisão: o operário em cuja casa tinha decorrido o encontro, "o famoso Roque era informador da PIDE. Um dos desconhecidos, que eram os perigosos", contou. No mesmo dia, no assalto à casa clandestina, foram presos a sua companheira, Isabel Moita, e o filho de ambos, João, de 21 meses. Permaneceu algumas semanas na sede da polícia política, na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Foi violentamente espancado, torturado e sujeito a chantagem em torno da companheira e do filho. "Esteve sem dormir 11 dias e 11 noites, em Maio, e de novo mais tarde, em Junho. As graves condições de detenção levaram a sua companheira Isabel a ferir-se, engolindo pedaços de uma colher. Solicitou, a 26 de Junho, a visita do pai, Dr. Félix de Morais Barreira, (...) pedido rapidamente indeferido pela PIDE", conta Alfredo Caldeira. Foi transferido para a prisão de Caxias, onde esteve em isolamento durante alguns meses, no último piso do reduto norte. Passou depois para outro piso, e finalmente para o reduto sul, mas permaneceu quase sempre só. Gaspar e Isabel casaram na prisão de Caxias, vendo assim reconhecidos os direitos conjugais (embora permanecendo, evidentemente, em celas separadas).

Foi julgado em finais de Janeiro de 1967, tendo denunciado em tribunal as violências a que fora sujeito. Foi condenado a "três anos e meio de prisão maior, perda dos direitos políticos por 15 anos, e medidas de segurança de seis meses a três anos, prorrogáveis." As "medidas de segurança", que permitiam manter os presos políticos na prisão para além do período de duração da sua pena de forma discricionária, foram, no seu caso, de quase dois anos. Passou o seu tempo de prisão no forte de Peniche, conhecido pelo seu brutal regime prisional. Teve várias estadias na prisão-hospital de Caxias devido à deterioração do seu estado de saúde.

Para Gaspar, a prisão foi a universidade, dedicando-se intensamente ao estudo da física: "Praticamente tudo o que estudei, estudei na prisão. Estudava diariamente, 10 a 12 horas por dia, ao longo de mais de cinco anos". Domingos Abrantes, companheiro de prisão, conta: "Em Peniche (...) estivemos quatro anos em celas lado a lado. Mostrou-se sempre uma pessoa solidária. Estudava afincadamente. Tempo não lhe faltava, pois estava sujeito a 20 horas por dia de isolamento. Sonhava, sem dúvida, voltar a dedicar-se à ciência. Apesar da incerteza quanto ao dia da sua libertação, continuou sempre a estudar com grande entusiasmo, e a dar aulas, uma das suas ocupações de importância na cadeia." A sua coroa de glória terá sido "incentivar um companheiro a quem dava aulas, um trabalhador agrícola do Couço quase analfabeto, que ele achava que tinha talento para as matemáticas. E que, uma vez em liberdade, continuou a estudar, veio a formar-se em Matemática, e foi professor." Saiu da prisão-hospital de Caxias, em liberdade condicional com inúmeras restrições, no Verão de 1971.



“Fui sobretudo um resistente, e um combatente pela liberdade.”
“Praticamente tudo o que estudei, estudei na prisão.”
G. Barreira

“O 25 de Abril deu-lhe a possibilidade de recuperar o seu verdadeiro nome e de pôr ao serviço do País os seus talentos como cientista. Em qualquer das frentes, sempre acreditou na necessidade e na possibilidade de construir um mundo melhor.” D. Abrantes (Militante do PCP e Conselheiro de Estado)

“Encontrámo-nos de novo na cadeia de Caxias, mas desta vez, quanta diferença, estávamos em liberdade e os agentes da polícia política, quase todos eles, estavam presos.” A. Caldeira (amigo e colega na Comissão de Extinção da PIDE)

“Falar do Gaspar é falar de um ser humano excepcional, simples e modesto, uma mente brilhante, um humanista de enorme sensibilidade e rigor ético, um cientista de grande inteligência e sentido prático, lúcido, culto, com uma ampla visão do mundo e da sociedade.” M. Guerreiro (Almirante da Marinha Portuguesa)

“O Gaspar nasceu e viveu a sua juventude no nº 60 da Estrada de São Martinho. Uma casa grande, a cerca de 1 km de uma das principais praças da cidade, o Campo da Vinha. Apesar de muito perto do centro urbano, nos anos 40, a casa tinha um enquadramento totalmente rural, com uma vista privilegiada do seu torreão sobre as quintas do vale do Cávado em Real e em Dume. (…) Num caminho de 1500 m, (…) chegava ao Liceu Sá de Miranda, onde teve as primeiras imersões no mundo da física. (…) Provavelmente, do Sá de Miranda, terá descido para o centro da cidade, pela rua dos Chãos, passando em frente à Arcada (…) e entrado na Brasileira, onde o pai (…), na mesa da sala principal junta à escada para o andar superior, gostava de ouvir caçadores e pescadores.” A. Cunha (ex-reitor da UM)

“O meu pai foi um modelo muito forte para mim (...) Os meus pais deram-me as ferramentas para pensar por mim próprio e para ser um bom ser humano, para estar neste vinda pensando nos outros e não apenas em mim, para acarinhar verdadeiramente os valores da vida humana e da dignidade humana” J. Barreira (filho de Gaspar)


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Décadas de 1970 e 1980

Saído em liberdade condicional em 1971, já na Primavera Marcelista, Gaspar Barreira vê negada a sua admissão na Junta de Energia Nuclear, e como experimentador na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Alegou a PIDE-DGS que "não oferece garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado." Noutros casos, pura e simplesmente os papéis da sua candidatura "perdiam-se". Apesar de todas as dificuldades, em 1972 Gaspar Barreira conseguiu juntar-se ao Grupo Experimental de Física da FCUL, liderado por Gomes Ferreira, integrando a Equipa de Física Nuclear de Fernando Bragança Gil. "Bragança Gil apoiou-o muito, foi a primeira pessoa que o acolheu na ciência", afirma Amélia Maio, colega e amiga, que recorda ter ouvido falar pela primeira vez de Gaspar quando chegou à FCUL um abaixo-assinado lançado por Isabel Moita a pedir a sua libertação. Gaspar já tinha cumprido a pena a que fora condenado e continuava preso ao abrigo das "medidas de segurança".

Logo após o 25 de Abril, quando a situação era politicamente mais "quente", Gaspar "desapareceu por uns tempos" do laboratório. "Ele sempre foi dado a esses desaparecimentos: estava ali, de repente desaparecia completamente e ia fazer outras coisas, ao fim de um tempo voltava e tudo continuava como se não fosse nada", conta Conceição Abreu. Como durante o resto da sua vida, a intervenção cívica conviveu com a dedicação à ciência. Fez parte da Comissão de Coordenação da Extinção da PIDE-DGS e da Legião Portuguesa, juntamente com Alfredo Caldeira, que conta: "Éramos poucos os que (...) conseguíamos ultrapassar os nossos credos pessoais e bandeiras de grupo e pensávamos e agíamos em conformidade com objectivos mais vastos. O Gaspar era seguramente um deles", acrescentado: "Não foi fácil mergulhar naquele universo que nos ensombrara toda a vida, a nós e quantas vezes aos nossos familiares, mas sabíamos com absoluta certeza que ali (...) cumpríamos um dever de cidadania, tentando impedir que a hidra subsistisse e pudesse desfazer o futuro". Gaspar integrou o gabinete do Conselheiro da Revolução Almirante Martins Guerreiro. Sobre esse período, recorda Martins Guerreiro: "O meu gabinete de conselheiro da revolução, com apenas três elementos, apresentava mais trabalho e propostas, mesmo na área militar, que os gabinetes dos chefes militares que dispunham de inúmeros colaboradores. Isso devia-se em grande parte ao trabalho, conhecimento, capacidade de análise e síntese do Gaspar, além do seu sentido prático e objectivo." Foi nessa qualidade que, numa viagem a Itália no Verão de 1975, conheceu Giana Lanfranchi, que viria a ser sua mulher.

Em 1976, a Equipa de Física Nuclear do Grupo Experimental de Física deu Origem ao Centro de Física Nuclear da Universidade de Lisboa (CFNUL). Na madrugada do dia 18 de Março de 1978, a Faculdade de Ciências, na altura situada na rua da Escola Politécnica, no actual edifício do Museu de História Natural e da Ciência, foi atingida por um incêndio de grandes proporções, descrito na imprensa como uma "catástrofe científica e universitária". O CFNUL foi transferido para o edifício do então Instituto de Física Matemática (IFM), onde hoje são as instalações do LIP em Lisboa. Neste período, a liderar o Grupo de Electrónica e Instrumentação Nuclear do CFNUL, Gaspar empenhou-se no desenvolvimento de sistemas para análises de materiais com as técnicas de espectrometria de fluorescência de raios X (XRF, da sigla em inglês), emissão de raios X induzida por partículas (PIXE) e espectroscopia de Mossbauer. A lista de publicações produzidas utilizando estas técnicas em contextos diversos é extensa, e pode encontrar-se nos slides (ao lado) apresentados na sessão de homenagem a Gaspar Barreira por Filomena Guerra, que chegou ao CFNUL como estudante em 1980 e partilhou o gabinete com Gaspar.

O seu grande interesse pela história, partilhado com Bragança Gil, levou-os, em particular, para aplicações pioneiras em Portugal na área da arqueologia. Foi celebrado um acordo de colaboração entre o CFNUL e o Centro de História da Universidade de Lisboa, e o trabalho deu frutos. "Conheci o Gaspar em âmbito profissional, porque, juntamente com o Professor Bragança Gil, desenvolvia investigação na área da arqueo-metalurgia, efectuando análises de artefactos metálicos pré e proto-históricos", conta Ana Margarida Arruda, amiga e investigadora do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. "Assim, o meu primeiro artigo publicado em revista científica, datado de 1980, foi assinado em colaboração com ambos, e ainda com Victor Gonçalves, arqueólogo, professor da arqueologia na Faculdade de Letras e também meu marido". Ao longo dos anos seguintes, são muitos os relatos de como o Gaspar "salvava" os colegas com a sua capacidade de fazer as coisas funcionar, consertando equipamento ou montando módulos que não existiam. Ana Noronha diz dever-lhe um analisador multicanal de que necessitava para o seu trabalho de investigação. Amélia Maio, um gerador de impulsos rápidos (nano-segundos) que Gaspar construiu em colaboração com Sousa Lopes.

Gaspar tinha, desde sempre, o impulso de falar de ciência para os não cientistas, e de pôr a ciência ao serviço do desenvolvimento do país. Aquando do 1º Encontro Nacional de Física, organizado pela Sociedade Portuguesa de Física (SPF) em 1978, foi publicada na Gazeta de Física, a revista da SPF, a análise com raios X, realizada no CFNUL, da medalha comemorativa do encontro, em que figurava um astrolábio e uma ampola de raios X. Em 1979, Gaspar desenvolveu um sistema de detecção de muões para a participação do CFNUL na primeira edição do ENDIEL — Encontro para o Desenvolvimento do Sector Eléctrico e Electrónico. O ENDIEL foi organizado (de dois em dois anos entre 1979 até 2015) pela ANIMEE — Associação Portuguesa das Empresas do Sector Eléctrico e Electrónico, que viria a ser um dos associados do LIP. Em 1980, regressada do doutoramento na Bélgica, Amélia Maio começou a planear uma experiência para a medida da massa do neutrino "usando técnicas de física atómica e nuclear, e também o efeito de Mossbauer". Teve um grande apoio de Vilela Mendes, e também o apoio técnico, e o enorme entusiasmo, do Gaspar. Havia na altura actividades de física de partículas organizadas entre a FCUL (nomeadamente com Augusto Barroso) e o IST (com José Mariano Gago), em que as pessoas se encontravam. Amélia foi convidada para apresentar o projecto, que interessava ao jovem grupo de partículas (que viria a reunir-se no LIP). "O Gaspar falou mais do que eu", conta, "todos os amigos sabem que quando ele se entusiasmava isso acontecia".

Por essa altura, Augusto Barroso teve a iniciativa de propor Gaspar para professor auxiliar convidado da FCUL. Com a ajuda de alguns colegas do CFNUL, em particular Amélia Maio e Conceição Abreu, recolheu as assinaturas de todos os catedráticos de todos os departamentos da FCUL. Apenas Sousa Lopes, da área de instrumentação e electrónica, não assinou. O pedido foi aceite, mas Gaspar recusou o lugar. Naquele início da década de 1980, o caminho levou Gaspar Barreira ao Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), em Trieste. O ICTP tinha um acordo de cooperação com o CFNUL. "Nessa altura, ainda éramos país em vias de desenvolvimento", explica Amélia Maio. Gaspar Barreira começou por ir a uma escola no ICTP, onde se deve ter destacado. Assim começou a colaboração. Em pouco tempo, tornou-se director do Laboratório de Microprocessadores e organizador da "ICTP-CERN Series of Colleges on Microprocessors", em que também dava aulas, e que o fez correr mundo: Trieste (1981 e 1983), Colombo, Sri-Lanka (1984), Bogotá e Lisboa (1985), Hefei, China (1986). Em 1985, os colegas do CFNUL recordam a chegada a Lisboa de uma grande quantidade de equipamento proveniente de Trieste e de Genebra: terminais, placas de electrónica, cabos, ferramentas. Gaspar poderia ter ficado por Trieste, prosseguindo uma carreira em rápida ascensão. Mas há desafios a que nunca diria não.



“O Gaspar tinha muitos sonhos, e muitos deles realizaram-se. Mas o Gaspar também acreditava nos sonhos dos outros, e lutava para os realizar”.

Filomena Guerra

“Como todos os amigos do Gaspar sabem, os seus interesses eram muitos e variados. E a sua imensa e diversificada cultura, também humanística, permitia conversas longas, sobre temáticas múltiplas (os cavalos que encimam a basílica de São Marcos em Veneza, os ginkgo bilobas, as castas de vinho franceses, os cogumelos da Serra de Grândola, as raças de canídeos e a sua “Talpa”, os babás napolitanos,...), quase sempre diante de um copo de vinho tinto e de algum petisco, em minha casa, em Lisboa, ou na sua, então em Paço de Arcos, sempre acompanhados pelo Victor e pela Gianna. O Gaspar foi um homem bom e de bem, inteiro e íntegro. Generoso, brilhante e culto. Foi um privilégio ter podido usufruir da sua companhia e ter contado com a sua amizade.” A.M. Arruda

"Na manhã de 25 de Abril de 1974, apesar de dizerem para as pessoas ficarem em casa, decidi fazer o meu habitual percurso a pé para a faculdade. Se me parassem, dizia que não sabia de nada e estava a ir trabalhar. Eu morava na Estrela, desci para S. Bento mas fiquei desiludida porque não estava lá ninguém. Depois subi para a rua da Escola Politécnica. Quando cheguei, só lá estavam o Bragança Gil e o Gaspar, que tinha levado um radiozinho. Quando começaram os acontecimentos no largo do Carmo o Gaspar foi para lá. A seguir ao 25 de Abril, quando as coisas começaram a ficar mais quentes politicamente, o Gaspar desapareceu durante um tempo."

A. Maio (ex-coordenadora do grupo ATLAS-LIP)

"(...) Devido à sua inteligência, engenho e cultura vivemos bons e inspirados momentos. O Professor Bragança Gil, um destemido, acolheu o Gaspar no Grupo em 1972 onde até ao 25 de Abril ele tudo fazia da electrónica à física (...). Quando resolvia os problemas dava sempre a essa solução um contributo inesperado e inovador." C. Abreu (Presidente da Sociedade Portuguesa de Física)

"Conheci-o em 1984 no ICTP em Trieste, durante a escola de microprocessadores onde os dois éramos professores. O curso foi replicado muitas vezes em todo o mundo. A nossa amizade cresceu maravilhosamente e tive muitas ocasiões para trabalhar com ele noutros projetos e desfrutar de sua calorosa hospitalidade, em Lisboa e no Algarve, juntamente com Gianna e Talpa".

Francesco Ragusa


Testemunho

Ana Margarida Arruda
(amiga, UNIARQ - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa)

Conheci o Gaspar na segunda metade dos anos 70 do século passado. Dependia ainda administrativamente do Conselho da Revolução, dada a sua condição de membro da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, mas já exercia funções no Centro de Física Nuclear das Universidade de Lisboa, alojado, justa e, atrevo-me a dizer, premonitoriamente, nas actuais instalações do LIP, a instituição que fundou e sempre acarinhou.

Outros, melhor do que eu, falarão da sua acção no domínio concreto das actividades políticas desenvolvidas durante o Estado Novo, especificamente da prisão no forte de Peniche e em Caxias. Por isso refiro apenas de passagem as histórias que contava, como por exemplo a do encontro, imediatamente após a Revolução de Abril, então em lados opostos da mesa, com o esbirro que o tinha torturado anos antes e de como se impressionou com a forma como este se humilhava e implorava. Mais significativa, porque definidora do carácter do Gaspar, foi o rádio, comprado a sua própria custa, que ofereceu ao mesmo pide, meses mais tarde, porque este se queixava da claustrofobia que sentia na cela. A empatia mútua inicial transformou-se, à custa de estas e de outras histórias, numa amizade forte e duradoura, que nunca se perdeu, apesar de algum afastamento que os nossos percursos profissionais e pessoais acabaram, de alguma forma, por impor. Um afastamento de que, felizmente, recuperamos nos últimos 10 anos.

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Criação do LIP

Em 1985/1986, Gaspar Barreira passava parte do tempo no ICTP de Trieste, e continuava activo no CFNUL. No processo de adesão de Portugal ao CERN, foi desafiado a voltar para fundar o LIP, com José Mariano Gago e Armando Policarpo, e construir a divisão de instrumentação do novo laboratório. O LIP uniria a pequena comunidade de física experimental de partículas, potenciando a participação no CERN e a exploração da enormes oportunidades que daí surgiam. Os que estavam em Portugal e os que estavam quase a regressar, os que tinham passado pela Área Oeste ou pela Área Norte do CERN, os jovens físicos experimentais de partículas portugueses juntaram-se no LIP. NA38 foi a primeira experiência em que Portugal participou como país membro, através de um instituto que também apareceu pela primeira vez, o LIP. "O projecto NA38 parecia ideal para ser a primeira experiência no CERN com a participação oficial de Portugal. E era mesmo", afirma João Varela, que, em 1984, terminara a sua tese de doutoramento em produção de Drell-Yan no espectrómetro de muões NA10. A primeira publicação de NA38 assinada pelo LIP como instituição surgiu logo em 1988.

Nessa altura, Gaspar Barreira desenvolveu e implementou para NA38 a placa de electrónica FARCE, a primeira desenvolvida pelo LIP. Paulo Gomes, então jovem estudante de electrónica e instrumentação orientado por Gaspar, fala-nos do "inesquecível Verão de 1986" que passaram "no laboratório de electrónica que o Gaspar tinha criado no ICTP, perto de Trieste, em imersão total: a trabalhar, comer e dormir in situ. A carta de electrónica que desenvolvemos e implementámos, a primeira feita no LIP, chamava-se FARCE (Fast Acquisition and Crate Encoder), mas funcionou muito bem em NA38. A seguir, participámos no desenvolvimento do primeiro link óptico para DELPHI e ALEPH (1987-89)."

A participação na experiência DELPHI do LEP, o grande acelerador do CERN da década de 1990, foi uma aposta extremamente importante para o crescimento do LIP, e na qual o Gaspar teve um papel determinante. A outra contribuição importante na fase de construção foram as LTDs, grandes cartas fastbus desenhadas no CERN, produzidas na indústria portuguesa (EFACEC) e testadas no LIP. Foi este projecto que desencadeou o programa de formação avançada para jovens engenheiros no CERN, que, graças a Gaspar Barreira, continua activo e é hoje um exemplo de sucesso.

Da electrónica, os interesses do Gaspar alargaram-se à computação, inicialmente relacionada com sistemas de aquisição de dados e programação de microprocessadores. Desde os primeiros anos, o Gaspar dedicou esforços consideráveis ao aumento dos recursos de computação. Comprou a primeira máquina MicroVAX do LIP. Adquirida via CERN, chegou em Dezembro de 1986, com seguintes especificações: "MicroVAX II Q2: 5MB RAM, 71 MB disk, tape drive for 94MB cartridges, 0.9 VPU and Fortran compiler". Menos de dois anos depois, existia já um pequeno cluster VAX local, uma (dispendiosa e lenta) ligação ao exterior que permitia enviar emails e fazer login remoto no CERN, assim como a primeira máquina UNIX do LIP. A primeira escola de computação do CERN em Portugal realizou-se logo em 1988, na Madeira, quando o grupo de computação do LIP dava os primeiros passos. O LIP foi integrado na Rede de Cálculo Científico Nacional (RCCN, 1Mb/s throughput) em 1988, e o Gaspar integrou o Conselho de Utilizadores da Fundação para o Cálculo Científico Nacional (FCCN). Viria a ser membro da Comissão Executiva da FCCN durante mais de uma década no início do século XXI.

Mas a criação do LIP não ocorreu num momento único no tempo, é um processo que tem decorrido ao longo dos últimos 34 anos. E a intervenção do Gaspar não se ficou pela divisão de instrumentação e computação do laboratório. Desde o início sobressaíram a sua audácia e a sua visão ampla, que moldou em grande medida o laboratório. A passagem de José Mariano Gago para a política activa, primeiro como presidente da JNICT e posteriormente em sucessivos mandatos como ministro da ciência, afastou-o por longos períodos do LIP, onde regressava sempre, mas de forma intermitente. De forma natural, Gaspar assumiu a liderança, e foi a presença constante que, em três décadas de crescimento, de avanços e recuos, de mudanças, de oportunidades e de escolhas, muito fez pela criação do laboratório que hoje conhecemos. Fez dele um laboratório de referência em física de partículas e astropartículas, instrumentação, tecnologia e computação. Com pólos em Lisboa, Coimbra e Braga. E esta abrangência, esta abertura, quer geográfica quer em áreas de actividade, é uma marca da visão do Gaspar.

E foi assim ao longo da vida do laboratório: Gaspar teve um papel fundamental no desenvolvimento da instrumentação e da computação no LIP; mas também na entrada de Portugal na experiência DELPHI do LEP; e na participação no LHC, desde os primórdios, na primeira metade dos anos 90; e no grande investimento na computação distribuída, uma mudança de paradigma exigida pelo enorme volume de dados das experiências do novo acelerador; teve também um papel importante na abertura à área da física das astropartículas, iniciada com AMS no final da década de 1990, e em que se implicou pessoalmente; e também na criação do pólo do LIP em Braga, que recentemente celebrou uma década de existência. Procurou sempre abrir o laboratório à sociedade, reconhecendo a importância da transferência de tecnologia e de conhecimento, da colaboração com a indústria, da formação avançada, da inovação, da divulgação científica. De tudo isso falaremos um pouco mais adiante. Muito do que o LIP é hoje se deve ao Gaspar, que lhe dedicou grande parte da sua imensa energia nestas mais de três décadas, e cuja visão moldou realmente o laboratório.



“Tive a sorte de participar nos workshops sobre microprocessadores (1985) e electrónica rápida (1987) para física de partículas que o Gaspar organizou, estabelecendo a base para o ramo de electrónica e instrumentação do LIP. Trabalhei com ele durante 10 anos, desde que me licenciei até completar o doutoramento (1995). O Gaspar sempre confiou e apoiou o meu trabalho, e foi uma grande fonte de inspiração para mim. .” Paulo Gomes


“Deste os primeiros tempos [do LIP], o Gaspar sempre lutou por mais capacidade de cálculo, mais capacidade de rede, mais capacidade de dados, para podermos fazer ciência aqui [em Portugal]” J. Gomes (responsável pelo Grupo de Computação do LIP)


"Se hoje temos um LIP que não é só de físicos a participar em experiências no CERN, mas antes uma comunidade diversificada mas coerente de físicos, engenheiros, técnicos, administrativos e estudantes, a participar nos desafios da física de partículas, com certeza, mas também nos desafios da instrumentação, computação e tecnologia, profundamente inserida em colaborações internacionais e nacionais, muito se deve ao Gaspar" Mário Pimenta (Presidente do LIP)


“Foi co-fundador do LIP, criado originalmente para fortalecer as relações entre Portugal e o CERN. Também graças à visão de Gaspar, o LIP tornou-se um elemento essencial na modernização da educação, ciência e tecnologia portuguesas. Gaspar nunca tentou estar no centro das atenções, antes dedicou as suas forças, com paciência e modéstia, aos objetivos comuns. Quando Mariano Gago se tornou ministro, Gaspar avançou sem hesitação, pronto para continuar o trabalho visionário iniciado por Gago. Gaspar acreditava profundamente no valor da cooperação internacional e, apesar dos sérios problemas de saúde, cumpriu habilmente as tarefas de delegado português nos Conselhos do CERN e do SESAME. Pelo seu caráter imaculado e imenso calor humano, considero um grande privilégio e riqueza ter convivido e trabalhado com Gaspar.” H. Schopper (antigo Director Geral do CERN)


"Nunca esquecerei seu entusiasmo contagioso, a sua visão, generosidade e sabedoria, que apreciei e apreciei desde os tempos de DELPHI, há trinta anos. Gaspar deixou uma marca duradoura em todos os que trabalharam com ele. Lembrar-me-ei sempre de Gaspar e do que ele fez pela física e pela sociedade." Ugo Amaldi (professor na Universidade de Milão)


“Um dos bónus da participação do LIP no Observatório Pierre Auger foi que tive oportunidade de conhecer e admirar Gaspar Barreira. Encontrámo-nos muitas vezes, e pude apreciar a sua hospitalidade em várias ocasiões. Gaspar era um homem de profunda humildade, dotado de um fundo de bom senso associado a uma grande visão e ambição para a ciência em Portugal e na Europa, que via a ciência como uma maneira de melhorar a vida de todos.” Alan Watson (co-fundador do Observatório Pierre Auger)


“Gaspar era um bom amigo, e vou ter saudades dele. Vou ter saudades de todas as nossas discussões sobre política italiana, política portuguesa, política em geral; das nossas discussões sobre física de partículas, física de astropartículas, física aplicada, física em geral; Vou ter saudades dos nossos jantares no Vale da Pedra, na Ereira e em Lisboa, e das nossas discussões sobre comida e vinho. A comunidade científica, Portugal e eu perdemos muito.” Alessandro de Angelis



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A aventura do LHC

Gaspar Barreira foi um defensor convicto do CERN, da cooperação internacional e das infraestruturas científicas de longo prazo. Apoiou o LHC desde os primórdios, na primeira metade dos anos 90, e foi membro do LHC Resources Review Board do CERN desde a primeira reunião. Teve um papel decisivo no reforço da participação das empresas e grupos investigação portugueses no LHC. Sobre como tudo começou, nada melhor do que as palavras do próprio Gaspar em breve conversa para o Boletim do LIP, na celebração dos 25 anos de ATLAS e CMS, em 2017, a que chamou "O dia em que ouvi falar do LHC pela primeira vez (antes de se chamar LHC)":

"Tudo aconteceu na manhã de 17 de Outubro de 1984. Eu estava em Trieste e minha missão era montar o laboratório de microprocessadores do ICTP. Estava a construir a FARCE, uma carta de interface para NA38 no CERN, a experiência em que participavam várias das pessoas que haviam de fundar o LIP menos de dois anos mais tarde. Tinha um pequeno-almoço combinado com Luciano Bertocchi, vice-director do ICTP — na verdade, o vice de Abdus Salam, que fundara o instituto. Ele não estava por ali quando cheguei, e perguntei ao porteiro se já tinha sido visto naquela manhã. "O professor Bertocchi está no gabinete", disse, "pede que vá ter com ele rapidamente, assim que chegar". No elevador, reparei no anúncio de um seminário de Carlo Rubia nesse mesmo dia. Achei estranho, pois os seminários eram geralmente anunciados com bastante antecedência. Quando cheguei ao gabinete de Bertocchi, enquanto me pedia para não dizer nem uma palavra a ninguém e repetia que seria "um grande acontecimento", disse-me que estava prestes a ser anunciado o prémio Nobel de Carlo Rubia. Rubia estava em viagem para sua cidade natal, que ficava ali perto, e no caminho daria um seminário em Trieste. Estava tudo programado para que o anúncio do prémio acontecesse durante o seminário. Mas o nevoeiro em Milão estragou tudo: o avião atrasou-se, e quando ele chegou o prémio já era público. E estava ali uma multidão, as televisões e tudo.

No seminário, Rubia disse à platéia (que incluía Salam, a quem ele chamava "velho amigo") que ainda no dia anterior estivera num helicóptero a sobrevoar o deserto do Texas, onde estavam a construir o próximo grande colisionador de protões, o SSC — Superconducting Super Collider. Ele disse uma frase que nunca esqueci: "Se a Europa não encontrar uma alternativa, está fora da corrida durante os próximos 100 anos". O SSC era um anel de 90 km, com uma energia de 20+20 TeV. Eu tinha vários colegas e amigos no grupo que já tinham contratos para trabalhar no SSC. Mas acontece que houve um grande conflito com o Congresso dos EUA, e o SSC foi cancelado em 1993, quando as obras de escavação do túnel já estavam bastante avançadas.

Entretanto, Portugal tornou-se membro do CERN e o LIP foi criado em 1986. Em 1989, o LEP entrou em funcionamento. No mesmo ano, Carlo Rubia tornou-se Director Geral (DG) do CERN. Era ainda DG quando o SSC foi cancelado, e nessa altura apoiou fortemente o projeto do LHC. Era mais modesto que o SSC, de modo a ser possível construí-lo na zona de Genebra naquela época. A título de curiosidade, vale a pena reparar que foi Rubia quem, também em 1993, tomou a decisão de tornar público o protocolo web, inventado no CERN. O DG seguinte foi Chris Llewellyn Smith, que consolidou o projecto. A construção decorreu durante os mandatos de Maiani (em que houve uma crise orçamental) e, sobretudo, de Aymar. O arranque aconteceu com Rolf Heuer. Primeiro houve uma falsa partida, devido a um problema grave com as soldaduras do sistema de hélio. O segundo arranque foi um grande sucesso e tivemos a descoberta do bosão de Higgs logo em 2012. Ainda nos anos 1990, foi criado o LHC Resources Review Board (RRB), que acompanhou todo o processo do LHC nas fases de planeamento, construção e operações, no que diz respeito ao acelerador, experiências e computação. Eu estive lá desde a primeira reunião, e é por isso que posso dizer que conheço praticamente todos os parafusos do LHC.

Quanto a Portugal, em 1992, houve uma reunião na sede da Sociedade Portuguesa de Física. Os responsáveis pelas quatro experiências então propostas foram a Lisboa — estiveram lá Michel Della Negra por CMS e Peter Jenni pela experiência então chamada EAGLE, que estaria na origem de ATLAS. A questão foi discutida no workshop do LIP na Praia das Maçãs. Lutei pela participação do LIP em apenas uma experiência. Afinal, Portugal juntou-se a duas experiências. Hoje vejo que estava enganado."

Em 1990, Gaspar Barreira, Amélia Maio, João Varela e Mário Pimenta participaram no "Aachen LHC workshop", dedicado aos objectivos de física e aos desafios experimentais de um colisionador de hadrões. O LIP tinha de participar no LHC! Embora essa participação fosse inquestionável, não havia uma visão unânime sobre em que experiência(s) entrar. O grupo de Amélia Maio trabalha com fibras ópticas e cintiladores há muito tempo, nos projetos SPACAL, RD1 e RD34 do CERN, iniciados com Peter Sonderegger, e estava agora profundamente implicado no desenvolvimento do calorímetro hadrónico TileCal para ATLAS. Por outro lado, o grupo de João Varela seguira o caminho do I&D em electrónica rápida nos projetos RD11, RD12 e RD13, e participava agora no desenvolvimento do calorímetro electromagnético ECAL para CMS (cristais PbWO4). Seguiram-se discussões internas sérias, que conduziram à decisão de entrar nas duas grandes experiências do LHC. O LIP assinou as "Letters of Intent" de ATLAS e CMS em 1992. Olhando para trás, apesar da tensão criada pela divisão entre os grupos ATLAS e CMS, esta decisão permitiu uma forte participação portuguesa no programa de física do LHC, utilizando e desenvolvendo as diversas competências existentes.

O projecto do acelerador LHC e o programa experimental associado ganharam, assim, força em 1992, quando as proto-colaborações CMS e ATLAS enviaram ao Comité Científico do CERN as Cartas de Intenção das experiências no LHC (CERN/LHCC 92-003). As Propostas Técnicas seguiram-se em 1994 (CERN/LHCC 94-38). Os grupos portugueses em ATLAS e CMS estavam entre os signatários dessas propostas iniciais. O acelerador e as experiências do LHC foram aprovados em 1995. Os grupos ATLAS e CMS do LIP participaram activamente no design das experiências, descritas em detalhes nos "Technical Design Reports" aprovados em 1998-2000, e na construção, instalação e preparação para operação dos detectores, concluída em 2008. Em 2009, o LHC fez colidir os primeiros feixes, e em 2010-2011 ambas as experiências acumularam uma grande quantidade de dados. A descoberta do bosão de Higgs foi anunciada em 2012. Os grupos do LIP estão agora intensamente implicados na análise de dados e também na preparação do upgrade do LHC e dos seus detectores.

Gaspar procurou activamente a participação de empresas portuguesas nas oportunidades criadas no LHC (acelerador e experiências). A. Silva Matos, construtor de tanques metálicos para o transporte de leite, viria a construir os tanques de hélio para o arrefecimento dos ímans supercondutores; a empresa Chipidea esteve envolvida no desenvolvimento e produção da electrónica para o ECAL de CMS; um protótipo das estruturas de referência do posicionamento de CMS (MAB) foi desenvolvido e testado no INEGI, Porto; o Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ) esteve envolvido nas técnicas de soldagem. Do lado de ATLAS,o imenso trabalho com fibras ópticas incluiu a caracterização das fibras para a leitura do TileCal e os desenvolvimentos necessários para a fabricação dos feixes de fibras em Portugal: a aluminização foi realizada em colaboração com Manuel Maneira, na FCT-UNL, e um robô para montagem dos feixes de fibras foi desenvolvido e construído na oficina do LIP em Coimbra, onde decorreu a montagem entre 2001 e 2003, que foi uma operação verdadeiramente industrial. Outras empresas viriam a tornar-se parceiros industriais do CERN no projecto LHC: EFACEC, Irmãos Bernardes SA (perfis de plástico para o TileCal), 3DTech (conectores de fibras ópticas e peças de plástico), HFA (electrónica do TileCal), Cabelte (upgrade de alta tensão do TileCal), PETsys Electronics (upgrade da electrónica do ECAL).

Gaspar Barreira foi membro do LHC-RRB, o comité com representantes de todos os países participantes nas experiências do LHC com o objectivo de monitorar as suas necessidades financeiras, desde o início e durante vinte anos, honrando sempre os compromissos financeiros portugueses com ATLAS e CMS.



“Desde o primeiro momento, surpreenderam-me verdadeiramente o entusiasmo e a confiança que o Gaspar transmitia quando falava sobre uma variedade de assuntos, mas em particular sobre as enormes oportunidades que uma colaboração próxima com o CERN podia trazer à indústria portuguesa em muitas áreas diferentes” O. Santos (ISQ)

“O Gaspar foi uma das pessoas chave, um dos iniciadores deste esforço da participação de Portugal no LHC, em 1992. Foi ele quem verdadeiramente fez com que o projecto fosse aceite na FCT e depois seguiu a execução do programa” J. Varela (fundador e ex-coordenador do grupo CMS-LIP)

“O Gaspar sempre apoiou muito a nossa participação no LHC, mas com grande autonomia. Nas decisões concretas, não impunha nada nem se interpunha, mas apoiava as decisões” A. Maio (ex-coordenadora do grupo ATLAS-LIP)

“Era um homem extraordinário, honesto, crítico, mas sempre construtivo. O CERN e ATLAS perderam um verdadeiro amigo. À minha memória voltam muitas intervenções dele no RRB, onde sua opinião tinha peso, e que ajudaram a experiência. E também me lembro com prazer de algumas visitas a Lisboa, onde ele foi um anfitrião amigo dos eventos do LHC.” P. Jenni (antigo coordenador de ATLAS)


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Computação distribuída

As primeiras propostas sobre como obter capacidade de cálculo com meios de computação distribuídos geográfica e administrativamente datam do final da década de 1980. Tendo em conta o enorme volume de dados que seria necessário processar com a entrada em funcionamento das experiências do LHC, o CERN decidiu, por volta do ano 2000, adotar esta nova abordagem para realizar a análise do LHC: os meios de computação estariam distribuídos pelos países participantes.

O modelo de computação do LHC é hoje a computação Grid, que não existia quando a história do LHC começou. A Grid é uma tecnologia de redes e computação que integra centenas de centros de computação locais numa única infraestrutura de computação. O objetivo é fornecer poder de cálculo suficiente para "todos em qualquer lugar do planeta", de forma homogénea e transparente para o utilizador, possibilitando a análise da enorme quantidade de dados produzidos pelas experiências do LHC.

Gaspar foi um forte defensor da computação Grid, e não poupou esforços para levar Portugal e o LIP para os principais projectos nesta área, no CERN e a nível europeu. Tudo começou por volta do ano 2000 com o DataGrid, um projeto europeu liderado pelo CERN. Portugal participou como parceiro não financiado. Após o DataGrid (2001), o LIP participou no projeto europeu CrossGrid, já como parceiro financiado. Graças aos esforços de Gaspar, o LIP foi parceiro de pleno direito em todos os projectos que se seguiram, nomeadamente EGEE - Enabling Grids for E-SciencE (I, II e III) e INT.EU.GRID (middleware computacional e infraestruturas piloto de computação Grid); Gaspar foi presidente do comité de política científica da European Grid Initiative (EGI) e o promotor da IBERGRID, a infraestrutura de rede ibérica que junta Portugal e Espanha, reforçando a cooperação entre os dois países.

Gaspar Barreira foi responsável pela criação em Portugal de um Tier-2 da Worldwide LHC Computing Grid (WLCG) do CERN. Esta rede global de computação do LHC foi aprovada pelo Conselho do CERN em 2002, e o respectivo acordo assinado em 2006. Portugal concordou em instalar um nó de nível 2 (Tier-2). Como o espaço nas instalações do LIP na Av. Elias Garcia, em Lisboa, onde o piloto já estava em execução, não era suficiente, o Tier-2 foi distribuído por três localizações: LIP-Lisboa, LIP-Coimbra e NCG (no LNEC). Neste programa, o LIP implantou o maior centro de informática já construído em Portugal. Gaspar Barreira, então presidente do LIP, e Jorge Gomes, coordenador do Grupo de Computação do LIP, tiveram um papel de liderança nesta aventura. Hoje, o LIP faz parte do projeto WLCG, liderado pelo CERN em colaboração com todos os principais institutos de física de alta energia do mundo, e opera o cluster Português Tier-2 do WLCG.

Gaspar sonhava muitas vezes em grande. A sua audácia para assumir responsabilidades capazes de trazer para Portugal infraestruturas geradoras de desenvolvimento e criadoras de oportunidades era, por vezes, desafiante para os nervos dos que estavam no terreno, com a responsabilidade de implementar as soluções acordadas, e de cumprir os prazos e os compromissos assumidos: onde vamos arranjar o dinheiro que falta? E os recursos humanos necessários para cumprir um prazo tão apertado? Gaspar acreditava profundamente nos seus projectos ambiciosos, e contava com a sua argúcia e com o seu poder de negociação. Mas também, é justo dizê-lo, com a capacidade técnica, a dedicação e o sentido de responsabilidade inexcedíveis do Grupo de Computação do LIP, liderado por Jorge Gomes.

Gaspar Barreira teve um papel central na criação, em 2016, da Infraestrutura Nacional de Computação Distribuída portuguesa, INCD, uma associação da FCT-FCCN, LIP e LNEC, e foi o primeiro presidente da Assembleia Geral da associação. Operado pelo LIP, o INCD fornece hoje serviços de high throughput computing, high performance computing, computação Cloud e serviços de dados para toda a comunidade científica portuguesa. Actualmente, a infraestrutura possui sites em Lisboa (LNEC) e Minho (datacenter da REN).

Hoje, o LIP participa no projeto EOSC-hub que junta EGI, EUDAT e INDIGO, e que materializa a visão da Comissão Europeia para o European Open Science Cloud (EOSC). O LIP, através da INCD, participa na IBERGRID, que junta centros de computação científica em Portugal e Espanha, e que permite uma participação conjunta dos dois países no EGI e no EOSC. A EGI é uma infraestrutura digital federada cuja missão é disponibilizar serviços de computação avançada para investigação científica e inovação. Os cientistas que utilizam estes serviços trabalham para organizações internacionais, infraestruturas de investigação, universidades ou simplesmente como investigadores individuais. Estes têm em comum o uso de serviços de computação para o tratamento e partilha de dados de investigação na comunidade científica.



“O trabalho com ele era sempre muito agradável, era uma óptima pessoa, e também construtivo e capaz de fazer compromissos” M. Turala

“Gaspar, um homem de princípios que sofreu por eles, foi também o principal promotor da cooperação ibérica em física de altas energias e computação (...) agora temos a responsabilidade de manter vivo o seu legado!” Carlos Alejaldre (Director, CIEMAT)

“Minha primeira conversa com Gaspar foi uma discussão colossal, (...) sobre computação. Era fácil entrar numa discussão com Gaspar sobre computação. Imediatamente comecei a apreciá-lo (...) Era uma das poucas pessoas que se referia ao sucesso com 'nós' e ao fracasso com 'eu'. Não se encontram muitas pessoas assim, geralmente é ao contrário. Isso foi algo que me fez logo gostar dele” Sergio Bertolucci

“Como o Gaspar costuma dizer, isto não é uma corrida de velocidade, é uma maratona, e temos de continuar a correr” J. Gomes (responsável pelo Grupo de Computação do LIP)

“Sem o Gaspar, provavelmente eu não estaria aqui a fazer esta apresentação, porque a IBERGRID simplesmente não existiria” I. Campos

“Penso que todos concordamos que o Gaspar era um visionário: (…) Era um visionário também na importância que atribuía à colaboração, e esse era um dos aspectos mais importantes para mim.” J. Marco

“Era de facto uma pessoa extraordinária e foi um privilégio ter a oportunidade de o conhecer (…) as contribuições que deu para abrir novas oportunidades, e sobretudo o exemplo, marcaram muitas pessoas e deixaram um rasto positivo de valor invulgar” L. Magalhães


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Impacto na sociedade

Gaspar Barreira foi um defensor convicto do CERN, da cooperação internacional e da promoção do impacto da ciência na sociedade, a todos os níveis. A partir a viragem do século, envolveu-se profundamente em questões de política e gestão científica, procurando sempre as melhores oportunidades para a ciência, para a sociedade e para Portugal. Foi o representante de Portugal numa variedade de organizações científicas e comités internacionais de ciência e de política científica, e coordenou vários programas internacionais de cooperação científica e tecnológica.

Gaspar foi o Delegado Português ao Conselho do CERN de 2006 ao Outono de 2018, e a sua voz estava entre as mais respeitadas por muitos membros do Conselho. No que diz respeito aos acordos de cooperação entre Portugal e Espanha, Gaspar Barreira conseguiu a renovação do contrato de computação antes mesmo de o acordo para o física de partículas ter a aprovação final do lado espanhol. Gaspar aceitava todas as missões em que estava convencido de que poderia fazer a diferença. Teve, por exemplo, um papel importante na ligação do Brasil ao CERN, e esteve presente na assinatura do MoU sobre as actividades brasileiras no CERN, em Setembro de 2009, após décadas de cooperação de físicos brasileiros no CERN.

Desde os primórdios, contribuiu verdadeiramente para levar Portugal para o CERN: os grupos de investigação, mas também a indústria, os engenheiros, os professores e os estudantes. Neste e noutros contextos, sempre teve uma preocupação especial com a transferência de conhecimento para a sociedade. Co-coordenou os programas de formação avançada para jovens engenheiros portugueses no CERN, ESA e ESO, e teve um papel importante na criação do Programa para Professores em Língua Portuguesa no CERN.

Gaspar Barreira foi o representante português no ECFA (European Committee for Future Accelerators) por mais de 20 anos (1996-2017). Como membro do ECFA, integrou o Grupo Europeu de Estratégia (ESG), que propôs a Estratégia Europeia para a Física de Partículas emitida em 2013, e actualmente em revisão. Foi o delegado português (com Lígia Amâncio) ao comité que propôs a revisão do European Strategy Forum For Research Infrastructures (ESFRI) de 2008. Era o Delegado de Portugal ao Conselho do SESAME, onde Portugal é país observador, tendo substituído José Mariano Gago. Nos últimos anos, a sua visão da ciência na Europa fez dele um colaborador chave da FCT e do MCTES, influente na definição de políticas nacionais e europeias.

"É fácil perceber o que o Gaspar fez por Portugal, e por Portugal no CERN. Talvez seja menos óbvio o que o Gaspar fez pelo CERN e pelo resto da Europa". Quem o diz é Sergio Bertolucci, que nos dá também a sua resposta: "O Gaspar sempre acreditou que a ciência é uma das poucas linguagens de paz que a humanidade inventou, e que o CERN é a demonstração disso mesmo. Ele foi uma das pessoas realmente relevantes no Conselho do CERN pelo menos nos últimos 15 anos. Foi alguém que deu continuidade ao Conselho, que compreendia as dinâmicas políticas, e que tinha visão (...) Em 2006, foi uma das pessoas que, olhando para o Tratado do CERN, compreendeu que o Conselho se devia preocupar com o laboratório em Genebra, mas com a organização de toda esta área científica na Europa. Isto deu origem à primeira estratégia europeia para a física de partículas. Não foi por acaso que a reunião final da sua aprovação aconteceu em Lisboa. (...) Outro aspecto em que ele foi fundamental na interpretação do Tratado foi ao compreender que o Conselho devia avançar no alargamento quer geográfico quer científico, ambos fundamentais para a mensagem central que o CERN representa."

6. Cooperação internacional, política científica e impacto na sociedade

Gaspar Barreira foi desde sempre um entusiasta da cultura científica para todos. Esteve na base de programas de formação em cooperação com o CERN, foi um dos fundadores do Ciência Viva, foi presidente do concurso de jovens cientistas. Nas palavras de Rosalia Vargas, presidente da Agência Ciência Viva, tinha uma "infinita paixão por espalhar o conhecimento. E queria fazê-lo em qualquer lugar". Foi alguém que "Olhou para a ciência com um sentido e um propósito: libertar as pessoas da tirania. Para ele a luta pela democracia estava profundamente ligada com a luta contra o obscurantismo e a ignorância (...) A liberdade nunca estaria completa sem a cultura científica, sem a ciência para todos."

Há pouco mais de uma década, Gaspar contribuiu para a criação de um pólo do LIP na Universidade do Minho (UM), em Braga, sua cidade natal, e assinou com o então reitor António Cunha o Acordo de Colaboração entre o LIP e a UM. O pólo do LIP no Minho cresceu da equipa inicial mínima (1 professor + 1 pós-doc) para os cerca de 30 colaboradores que tem hoje. António Cunha conta-nos como foi: "No final da primeira década deste século, o António Onofre passou a integrar o corpo docente da UM e nucleou um grupo de física de partículas. Apoiado pela energia e determinação do Gaspar, esse núcleo haveria de dar origem ao pólo LIP-Minho, formalizado a 17 de Fevereiro de 2010. O respectivo protocolo foi assinado pelo Gaspar em representação do LIP e por mim, então recente Reitor, em cerimónia do Dia da Universidade presidida pelo ministro Mariano Gago (...) Desde então, o pólo desenvolveu-se rapidamente em número de pessoas e resultados (...) Por tudo isto, pelo talento, pela visão, pela ajuda e pela amizade, a nossa gratidão e apreço são enormes. Obrigado, Gaspar!"



“O Gaspar teve um papel ímpar no desenvolvimento da indústria em Portugal. O programa de formação de engenheiros, que coordenou ao longo das últimas décadas, era uma das suas paixões”
“O Gaspar deu uma contribuição crítica para a política científica (…) O novo regime legal para as instituições de investigação científica teve uma contribuição porventura inédita do Gaspar, sem nunca ter querido aparecer, sem nunca querer que o seu nome fosse divulgado (…) aparecia a qualquer hora no ministério e era sempre bem vindo”
Manuel Heitor (Ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior)

“O Gaspar era sincero e muito directo, mas sempre movido pela justiça e pela humanidade” R. Heuer (antigo DG do CERN)

“Gaspar era um parceiro fundamental do CERN, sempre construtivo e solidário (...) era uma pessoa única e especial, um grande amigo da física de partículas e do CERN. Era um grande cientista, um homem curioso e uma mente muito brilhante.” F. Gianotti (DG do CERN)

“A SPF orgulha-se de ter tido o Gaspar Barreira como sócio. Desde o início da sua vida profissional na Física sempre foi um mestre, empenhado em ajudar as gerações mais jovens, em especial estudantes de física e engenharia física, a descobrirem novas rotas em instituições internacionais, entre as quais se destacam o CERN e a ESA.” Conceição Abreu (Presidente da Sociedade Portuguesa de Física)

“Recordo como o Gaspar dava enorme importância à possibilidade e igual oportunidade para todos de acesso à educação, cultura, ciência e tecnologia , e a esperança que ele tinha na formação de cientistas e na gestão, ética e responsável, do sistema científico, como vector de desenvolvimento das sociedades e de emancipação dos Homens” M. Guerreiro (Almirante da Marinha Portuguesa)

“Mais tarde, já com José Mariano Gago Ministro da Ciência e da Tecnologia, voltámos a participar em iniciativas que considerávamos necessárias. Obviamente, discutindo, discutindo, discutindo. Foi essa a nossa amizade inquebrantável” A. Caldeira (amigo e colega na Comissão de Extinção da PIDE)

“Gaspar olhou para a ciência com um sentido e um propósito: libertar as pessoas da tirania. Para ele a luta pela democracia estava profundamente ligada com a luta contra o obscurantismo e a ignorância (…) A liberdade nunca estaria completa sem a cultura científica, sem a ciência para todos” R. Vargas

“Gaspar Barreira nasceu em Braga e foi muito importante para o desenvolvimento científico da cidade e da região nos últimos 20 anos. De facto, numa vida de quase 80 anos, as primeiras e as últimas duas décadas estão fortemente ligadas à cidade” A. Cunha, ex-reitor da UM

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Terapia com protões

Os detectores e outras ferramentas usadas na física de partículas têm um grande número de outras aplicações, nomeadamente na área da saúde, algumas das quais têm vindo a ser desenvolvidas no LIP. A rede de radioterapia em Portugal possui actualmente cerca de 60 unidades de LINAC e 68 de braquiterapia, em instituições de saúde públicas e privadas. A inclusão de uma unidade de terapia com protões foi já considerada na revisão de 2015 da rede nacional de radioterapia promovida pela Direcção Geral de Saúde. Quando foi definida como prioridade pelo Governo a instalação em Portugal de um centro de terapia oncológica com protões, com valências de tratamento e de investigação, Gaspar abraçou de imediato a ideia. Foi este o seu último grande projecto e entusiasmo.

Em 2017, foi criado um grupo de trabalho com o objectivo de definir uma estratégia para a instalação em Portugal de uma nova unidade de saúde para o tratamento de doentes oncológicos com recurso a tecnologias de partículas de alta energia (Diário da República nº 197/2017, de 12 de Outubro). Aspectos a identificar e a planear eram: o número ideal de tratamentos necessários; o apoio clínico necessário à operação; a base técnica e científica de apoio às actividades de investigação; o apoio necessário às actividades de I&D (com a FCT); o desenvolvimento de uma rede nacional de infraestruturas de investigação, formação e assistência médica para o tratamento de pacientes com cancro usando novas tecnologias; as condições necessárias para estimular a cooperação científica, técnica e clínica a nível internacional; os recursos humanos e financeiros necessários.

Este grupo de trabalho foi coordenado por Gaspar Barreira, do LIP, em representação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e por João Oliveira, presidente do Conselho de Direcção do Grupo Hospitalar Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil (IPO), em representação do Ministério da Saúde. Integraram ainda a comissão representantes de diversas instituições e programas na área da saúde, assim como Arlindo Oliveira, Presidente do Instituto Superior Técnico (IST). Considerava-se no despacho que "a eventual instalação desta unidade irá valorizar a capacidade instalada no Campus de Tecnologias Nucleares em Sacavém, assim como facilitar o desenvolvimento de uma nova estratégia nacional para o reforço da física médica e da investigação clínica na área do cancro", e que a nova unidade deveria incluir "uma forte valência de investigação e desenvolvimento, designadamente de investigação clínica, o que implica o envolvimento efectivo de um leque alargado de instituições e peritos das áreas sectoriais envolvidas". Este grupo de trabalho contou com o apoio de uma comissão internacional que integrava representantes do CERN, bem como de instituições científicas e centros clínicos internacionais de referência que venham a facilitar a cooperação científica e tecnológica em terapias oncológicas.

O grupo fez o seu trabalho e desenvolveu um plano para a instalação em Portugal de uma infraestrutura deste tipo. Foi até aqui que a saúde do Gaspar lhe permitiu ir, num grande esforço para levar o projecto até um ponto em que dificilmente recuasse. Em 2018, uma resolução do Conselho de Ministros (28/2018) estabeleceu que a terapia com protões estará disponível no sistema nacional de saúde, com capacidade inicial para tratar 700 pacientes por ano. A rede deverá ser nacional, mas a primeira unidade será no Campus Tecnológico e Nuclear do IST, aproveitando os recursos humanos e técnicos disponíveis. A FCT atribuiu 10 M€ para a formação de médicos e investigadores no período 2018-2023. A FCT, os IPOs e outros hospitais e instituições envolvidos no tratamento do cancro estão autorizados a criar uma associação sem fins lucrativos para instalar e operar a futura unidade de terapia com protões.

Em Dezembro de 2019, foi criada a associação ProtoTera: Portuguese Proton-Therapy and Advanced Technologies for Cancer Prevention and Treatment Association. Os seus membros fundadores são o IPO, o LIP, o IST, e a Universidade de Coimbra (UC). Os principais centros de investigação do IST e da UC participantes são, respectivamente, o Centro de Tecnologia Nuclear (CTN) e o Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS), com quem o LIP desenvolveu uma parceria estratégica e importantes projectos de colaboração nos últimos anos. A visão é promover uma rede nacional para o diagnóstico e tratamento, investigação e educação sobre o cancro, usando terapias com feixes de partículas de alta energia (em particular a terapia com protões), teranóstica, dosimetria e técnicas avançadas de imagiologia médica, para melhorar a precisão e a medicina personalizada.

7. A Física e a Medicina: terapia com protões

Numa primeira fase, serão instaladas duas infraestruturas: uma no campus do CTN, com um feixe de protões de 230 MeV; e outra no ICNAS, com um feixe de protões de 70 MeV. A instalação de Lisboa terá duas ou três salas de tratamento e uma sala de investigação. A instalação de Coimbra será especializada no tratamento de cancro dos olhos e na produção de radioisótopos pesados. Serão estabelecidas colaborações estreitas com centros de referência internacionais, nomeadamente com o CERN, GSI, Hospital Universitário de Heidelberg, MD Anderson Cancer e Trento Proton Therapy Centre. Citando Mário Pimenta, presidente do LIP, "O último grande sonho do Gaspar para Portugal está ainda por cumprir. Nele nos empenharemos!"



“Poucos meses antes da sua partida, consciente de que tinha pouco tempo, falava da necessidade de mais seis a doze meses de vida para fazer avançar a terapia oncológica com protões, de modo a garantir que o projeto atingia um ponto de não retorno. Mesmo nessa fase pensava nos seus sonhos e projectos, preocupava-se mais com os outros do que consigo próprio. Era assim o Gaspar. Cumpre-nos dar vida aos seus últimos sonhos”. M. Guerreiro (Almirante da Marinha Portuguesa)

“O Gaspar chegou com todo o seu entusiasmo (…) instalar uma unidade de terapia com protões em Portugal dependia apenas do empenho que puséssemos nisso (...) Ele foi uma força imensa a fazer avançar esta ideia” J. Oliveira (Director do IPO)

“A terapia com protões é ao mesmo tempo uma tecnologia madura e uma tecnologia de futuro. É por isso que não devemos contentar-nos com uma solução chave-na-mão” A. Oliveira (Presidente do IST)

“(…) apenas temos de conseguir o dinheiro, o que vai ser um pouco mais difícil sem o Gaspar, que conseguia ser mesmo muito persuasivo. Mas também aprendemos alguns truques com ele.” J. Marques (Director do CTN/IST)

“O Gaspar foi uma pessoa sempre à frente do seu tempo. (...) Em 2016, antes de uma visita ao CERN, o Gaspar lançou o desafio de se discutir a introdução da terapia com protões em Portugal (…) Algum tempo depois, mostrou-me entusiasmado o relatório da OMS que dizia que para cada 10 milhões de habitantes deveremos ter no futuro uma clínica para esse tipo de tratamentos. Espero que em breve possamos vir a inaugurar a Clínica Gaspar Barreira.” Manuel Heitor (Ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior)

“Visitei o Gaspar pouco tempo antes de ele falecer, juntamente com alguns amigos, e ele ofereceu-me uma mensagem muito importante: estava absolutamente ciente do estado de saúde em que se encontrava, mas passou todo o tempo connosco a falar do futuro.” S. Bertolucci (Universidade de Pisa, ex-Director de Investigação e Computação Científica do CERN)

“O seu último grande projecto e entusiasmo, a instalação em Portugal de um centro de tratamento e investigação para terapia oncológica com protões está ainda por cumprir. Nele nos empenharemos!” M. Pimenta

“O Gaspar sempre sonhou, e muito dos seus sonhos concretizaram-se. Esperemos que o seu último sonho também ele se concretize: um acelerador de protões para investigação em física, terapia, e pesquisa em medicina oncológica. Esta infraestrutura é fundamental para a Física e a Medicina em Portugal.” C. Abreu


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